segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Valentim de Carvalho

Em 1923, Valentim de Carvalho comprou o Salão Neuparth - loja de música centenária - e com isso deu um novo impulso ao comércio no chiado. Foi um visionário do que, mais tarde, haveria de se designar por negócio da comunicação. Apostou na rádio para vender mais discos e, nos anos 50, fundou a primeira fábrica em Portugal. Eis algumas histórias suas e dos sucessores no reino dos multimédia

Quando desapareceu, em Julho de 1957, a cantora Maria Alice vestiu-se de luto carregado para o acompanhar à última morada; a «menina da rádio» - da Lisboa dos anos 30 - sentia de novo aquele estranho vazio que há alguns anos a incomodava. O senhor Valentim - como ela sempre se lhe referiu - partia sem nunca ter querido filhos; nem dela, a segunda esposa e companheira dedicada, nem da sua primeira mulher, também Maria Alice, com quem esteve casado (por pouco tempo) no início da década de 30.

Quarenta e dois anos depois, as mãos manchadas de Maria da Graça Barbosa de Carvalho revelam o passar do tempo. A sobrinha mais velha de Valentim de Carvalho - uma das suas herdeiras naturais - revolve as gavetas da vivenda encomendada pelo tio ao arquitecto Jorge Segurado, à procura de fotografias antigas. A tarefa torna-se difícil e morosa; neste clã nunca ninguém teve o hábito de ocupar os serões a organizar o álbum dos retratos. Nem ela, uma das mulheres solteiras da família.

Maria da Graça sempre se sentiu uma mulher avançada para o (seu) tempo: «Fui a única, dos meus cinco irmãos, a ser capaz de dizer 'não' ao tio Valentim.» Os manos - como ainda hoje se tratam os sobreviventes - reagiam de forma diferente, apesar de todos terem escolhido o seu próprio caminho. Carlos, já desaparecido, ingressou na carreira diplomática; Maria Eulália licenciou-se em Filologia Românica e casou com o poeta David Mourão-Ferreira (seu colega na faculdade de Letras), de quem teve dois filhos. Tininha casou no Porto com Francisco Vasconcelos, e teve cinco filhos. Rui Valentim, gémeo de Tininha, dedicou-se de alma e coração à firma. Ignorou a faceta autoritária da personalidade do tio em troca da paixão que o acompanha desde a adolescência: «Fabricar engenhocas.»

Os gémeos Rui Valentim e Tininha são os filhos mais novos do advogado Barbosa de Carvalho e de Adelaide, uma das quatro irmãs de Valentim de Carvalho. Valentim tinha um fraco pela mais velha, Etelvina, mas esta nunca casou. Guilhermina, com sérios problemas de saúde, foi a marginal do clã. Raul, os «ouvidos» de Valentim, a quem o irmão confiava as contas do império que ousou construir no mundo da comunicação.

Se tivesse vivido no último quartel do século XX, Valentim de Carvalho designar-se-ia a si próprio como um empresário do sector multimédia e, provavelmente, transferiria a responsabilidade da gestão do património da família para as mãos de uma «holding», cotada em Bolsa, pouco se importando com o contributo que os sobrinhos poderiam dar à continuidade do negócio. Mas nas primeiras décadas do século a mentalidade era diferente. Respirava-se uma atmosfera personalizada, em que a figura do patrão infundia respeito e segurança.

Valentim nasceu num meio humilde, filho do dono de uma casa de pasto no (então) bairro periférico de Campo de Ourique e começou a trabalhar ainda menino. Não sabia uma nota de música, mas cedo se apercebeu que a venda de pautas e instrumentos musicais constituía uma excelente oportunidade de negócio. Em 1914 estabeleceu-se por conta própria no nº 37 da Rua da Assunção; a tabuleta com letras douradas sobre fundo negro anunciava: Valentim de Carvalho, indicando o número de telefone (4282), um objecto ainda raro naquela época.

Na altura era um republicano convicto, com ligações à maçonaria; em 1921 desliga-se formalmente desta organização numa carta datada de 31 de Outubro: «A Maçonaria acaba de praticar dois actos, um do outro sequência, que me levam a adoptar uma atitude perante uma agremiação a que ainda pertencia, por ter em muito apreço os II dessa oficina com quem privo. (...) Peço-vos pois que me considerem desligado da Maçonaria, ainda que o faça cheio de pesar, não só pelas dolorosas razões que me movem, bem como pela estima que me merecem os II (...)». Refira-se que este texto é o único documento com autoria atribuída ao próprio Valentim de Carvalho transcrito no livro «Sons de Lisboa: uma biografia de Valentim de Carvalho», da autoria de José Sarmento de Matos.

A saída desta organização não prejudicou o desenvolvimento do comércio de discos e pautas musicais. Dois anos mais tarde, em 1923, Valentim dá o passo mais importante da sua carreira: compra o Salão Neuparth e transforma este estabelecimento da Rua Nova do Almada numa instituição da Baixa de Lisboa. O «Salão Neuparth - Valentim de Carvalho» passa a ser local de tertúlia obrigatória da elite culta da primeira metade do século. Médicos conhecidos pelo seu amor às artes e letras passaram a picar o ponto na loja da Valentim de Carvalho: Pulido Valente, Reinaldo dos Santos, Juvenal Esteves e Fernando Fonseca, aos quais mais esporadicamente se juntava a marquesa Olga de Cadaval e o poeta Teixeira de Pascoaes, entre muitos outros.

A II Guerra teve um efeito paradoxal em Lisboa, transformando a capital numa cidade cosmopolita; por aqui passaram hordas de refugiados judeus em busca de um transporte que os conduzisse para longe da Europa. Alguns eram cultos e tinham posses, motivo suficiente para gerarem uma certa animação na Baixa. O noticiário de guerra fazia com que as pessoas ouvissem muita rádio, e a música era o entretenimento que se impunha para aligeirar os dias e aliviar os espíritos do conhecimento dos males que os outros penavam. Lá fora.

Visionário, Valentim percebeu que a rádio o faria vender discos; cada vez mais. Começou a alimentar o projecto de construir uma fábrica de discos em Portugal, para dar voz aos artistas nacionais; os seus sonhos eram demasiado grandes para caberem na área do comércio.

Em casa, na Rua Braamcamp, não descurava a educação dos sobrinhos, órfãos de mãe; Adelaide morrera aos 32 anos na sequência de uma operação à barriga. «Naquele tempo a anestesia era feita com uma máscara de clorofórmio. Deram-lhe de mais e ela não acordou», conta a filha mais velha Maria da Graça, que perdeu a mãe aos nove anos: «Eu era uma miúda ginasticada e desempoeirada e a partir daí passei a andar toda curvada, com o peso da responsabilidade. Vestiram-me de luto carregado».

Os gémeos Rui e Tininha tinham dois anos quando Adelaide morreu; a tia Etelvina substitui a irmã o melhor que pode, enquanto o tio Valentim, na retaguarda, estava cada vez mais atento à educação dos sobrinhos que haveriam de herdar o património que ia adquirindo: nessa altura, Valentim de Carvalho já tinha estendido a sua actividade para o sector do imobiliário, representações de marcas (máquinas de escrever, electrodomésticos, etc), entre outros.

Dos cinco filhos de Adelaide, Rui Valentim era o único que se entretinha na loja da Rua Nova do Almada: «Gostava de ir para lá trabalhar nas férias; se calhar hoje chamavam trabalho infantil a essa minha actividade, mas a verdade é que fiz a tarimba toda; comecei por limpar o pó, aprendi a polir os móveis para os gramofones com uma boneca. Só não gostava de fazer embrulhos, não tinha jeito nenhum para aquilo». Insiste em prestar homenagem à memória do senhor Guimarães, um dos primeiros empregados da firma, com quem aprendeu muito: «De vez em quando, dizia ao tio Valentim que eu estava a sair da linha; mas era só para não parecer que estava a dar graxa ao patrão, as pessoas tinham o seu orgulho».

Nos primeiros anos da adolescência, Rui apaixonou-se pela técnica: «O meu sonho era construir um gravador». E fê-lo, embora reconheça que gravava muito mal. A engenhoca ardeu aquando do incêndio do Chiado, a 25 de Agosto de 1988. A loja ficou completamente destruída bem como quase todo o arquivo fonográfico e documentos pessoais: «Não se aproveitou quase nada. Foi um desgosto terrível, um grande corte com o passado.»

Rui Valentim assumiu o comando da empresa depois da morte do patriarca. Porque era um homem fascinado pela técnica, apostou na vertente industrial do grupo Valentim de Carvalho. A primeira fábrica de discos do grupo fora edificada em Lisboa (Campo Grande) no final da década de 40. O sucessor rentabilizou esta unidade até a tornar incapaz de dar resposta às necessidades: «A minha outra paixão eram os artistas, a escolha do repertório. Acompanhei quase todas as gravações da Amália, e encaro isso como um privilégio, uma honra». Aquando da morte da diva remeteu-se ao silêncio: «Não tenho palavras para dizer o que sinto.»

À semelhança do tio, Rui Valentim já casou depois dos 40, com a galerista Maria Nobre Franco, actual directora da Colecção Berardo no museu de Sintra. Não há descendentes desta ligação, o que volta a eleger os sobrinhos como actores privilegiados da sucessão nas empresas da família (os filhos de Maria Eulália, o filho de Carlos, e os filhos da Tininha).

Francisco Vasconcelos (43 anos), um dos cinco filhos da gémea de Rui Valentim, assume a liderança do grupo no início desta década, numa época pouco auspiciosa para os negócios da família. O incêndio do Chiado e o aparecimento do CD são dois acontecimentos que deixaram marcas profundas. O primeiro porque afectou a estrutura emocional da empresa e de todos os seus colaboradores, ao mesmo tempo que destruiu o arquivo e o património histórico da empresa, obrigando ao encerramento da sua loja mais emblemática. O segundo porque comprometeu a viabilidade da fábrica de discos de vinil em Paço d'Arcos, que atingira o máximo da sua produção em 1985.

Francisco começa a trabalhar na empresa pouco tempo depois do 25 de Abril. Estreia-se como vendedor da já desaparecida loja Valentim de Carvalho da Av. Roma (Lisboa). De referir que o seu primo direito David Ferreira (filho de Maria Eulália e de David Mourão-Ferreira e actualmente administrador da EMI) fez exactamente o mesmo trajecto. Em 1979-80 mudam-se os dois para a editora: «Com funções trocadas, registe-se. O David, que tem imenso jeito para contactos, começou pelo planeamento enquanto eu trabalhava na promoção. Isso acabou por ser corrigido rapidamente».

Ao assumir a escolha dos artistas a editar, Francisco entra em rota de colisão com as opções do tio Rui Valentim, um incondicional de Amália. «A Amália quase que asfixiou a casa. Por causa dela, prejudicámos a restante edição nacional. Nomes como o Sérgio Godinho, Fausto, Zeca Afonso ou Vitorino não estão connosco por causa da Amália», comenta. «E o mais curioso é que a grande expansão da nossa fábrica de discos acontece depois do 25 de Abril.»

Atento às ideias da nova geração, Rui Valentim encara a hipótese de começar a delegar nos sobrinhos as opções editoriais da empresa que (então) se chamava EMI-Valentim de Carvalho: «Foi um período complicado; a nossa ligação internacional à EMI estava a ser questionada», conta Francisco enquanto recorda que a Kate Bush lhes salvou a vida: «Um indivíduo da EMI chamado Mike Eatley veio cá para solucionar o problema. Ouviu a Kate Bush na rádio vezes sem conta, e achou que nós, eu e o David, estávamos a fazer um grande trabalho de promoção. Decidiu dar-nos uma oportunidade e mantivemos a associação entre as empresas.»

Uma greve de músicos de orquestra (utilizados nas gravações em estúdio) constitui o segundo momento de sorte para os primos David e Francisco. «Aproveitámos para lançar os GNR, Rui Veloso e os Xutos, e a verdade é que além de antevermos o aparecimento de uma nova geração na música portuguesa, relançámos a área editorial da Valentim de Carvalho».

Alguns anos mais tarde (1983-1984) David e Francisco, por alturas do divórcio da EMI com a Valentim de Carvalho, abandonam o ramo familiar e vão trabalhar para a EMI. O primeiro ainda está na EMI, enquanto o segundo regressou à casa-mãe para imprimir um novo ritmo ao negócio que o patriarca da família começara no tempo da República: «Aprendi na EMI aquilo que mais tarde me foi útil na Valentim de Carvalho.»

A partir de 1987 Francisco decide apostar na expansão da rede de lojas: «A Valentim de Carvalho tinha começado por ser uma casa comercial que evoluiu para o sector industrial e descurou a actualização das lojas. A casa da Rua Nova do Almada era muito completa em termos de música clássica, mas eu, quando queria comprar outro tipo de discos, ia buscá-los às lojas da concorrência.»

O incêndio do Chiado acabou por funcionar como um catalisador que obriga a uma rápida abertura da loja do Rossio. De então para cá o sector comercial da Valentim de Carvalho decide conquistar o público jovem: «Tinha a perfeita noção de que era necessário agarrar esta franja do mercado, antes de a Virgin e a FNAC se instalarem no mercado português», diz Francisco que entretanto assumira a liderança (prática) da administração do grupo (a presidente do Conselho de Administração ainda hoje é a sua tia Maria da Graça).

A primeira fase da renovação faz-se com a prata da casa: Luís Castanho, marido de Adelaide - a filha de Maria Eulália e David Mourão-Ferreira - é o responsável pela área comercial. António, um dos irmãos de Francisco, é o responsável pelos negócios em Angola (onde a Valentim já instalou vários estúdios e tem projectos para o futuro). Pedro, um outro irmão de Francisco, assume a coordenação dos estudos de vídeo, que constituem uma etapa decisiva para a entrada do grupo na área do multimédia. Carlos, primo de Francisco, fica na administração.

Em meados da década de 90, Francisco decide convidar um elemento estranho à família para a administração; trata-se de Manuel Falcão, ex-jornalista e crítico musical, colega de escola de David Ferreira: «Na altura fiquei surpreendido com a proposta. Conhecia o Francisco há muitos anos mas nunca tinha pensado trabalhar naquilo que eu classificava de 'lado de lá' quando era jornalista.»

Manuel Falcão acaba por ser um homem de confiança de Francisco, tal como o senhor Guimarães o fora para o velho Valentim ou o senhor Ribeiro para Rui Valentim; salvaguardem-se as diferenças de perfis entre os nomes mencionados e a dinâmica que a empresa adquiriu. Os tempos mudaram, e a Valentim de Carvalho evoluiu de uma simples loja para um grupo multimédia que factura mais de sete milhões de contos ao ano.

O velho patriarca ficaria contente com o trabalho dos sobrinhos se, em sonhos, pudesse sobrevoar a sua Lisboa. Os herdeiros assumiram-se como verdadeiros sucessores e cumpriram o sonho de um rapaz que nasceu pobre no dia dos namorados de 1888.

Um senhor da Baixa - Texto de MANUELA GOUCHA SOARES / Expresso, 20/11/1999

Valentim de Carvalho nasceu na freguesia de Santa Isabel, em Lisboa, a 14 de Fevereiro de 1888, dia de São Valentim [daí o seu primeiro nome]. Os pais eram de Maxial, junto a Torres Vedras. A primeira casa de Valentim de Carvalho foi em Campo de Ourique, onde o pai tinha uma casa de pasto (restaurante), na esquina da rua Ferreira Borges com a rua Correia Teles. A família vivia no primeiro andar, sobre o armazém. A mãe queria que o jovem estudasse, mas, muito doente, não conseguiu impor a sua visão. Desde cedo, Valentim de Carvalho dedicar-se-ia à actividade comercial, primeiro como colaborador e, mais tarde, como empresário.

Assim, desde 1914, ocupava a rua da Assunção, 39, onde vendia nomeadamente capas e letras de músicas (de revistas). Depois, em 1923, ocupa também o até então chamado salão Neuparth [cujo nome mantém], à rua Nova do Almada, 95 a 99, no Chiado. O estabelecimento fora fundado por Eduardo Neuparth em 1824, ligado à música. Valentim vendia gramofones, discos, pianos e músicas. Ainda em 1923 edita o conjunto da obra de António Fragoso, considerado então a principal figura da música portuguesa. Desenvolvia-se o salão Neuparth, com publicidade feita com desenho de Stuart Carvalhais, em estilo jazzband, e na altura em que o cancan e o charleston se ouviam nos discos.

Valentim de Carvalho casaria com Maria Alice Marques, colega do conservatório da sua irmã Etelvina. Maria Alice foi fadista e uma das primeiras meninas da rádio e do disco. Para além das músicas da mulher, o catálogo discográfico da casa Valentim de Carvalho confunde-se com a edição de discos no nosso país. No fado como noutros tipos de música. Ainda hoje - embora já não ocupe a mítica loja do Chiado, que ardeu com o incêndio de 1988, e de a marca pertencer a outros proprietários - o nome Valentim de Carvalho é respeitado.

Existe já um livro sobre Valentim de Carvalho - e que me serviu para editar esta nota -, escrito por José Sarmento de Matos (Sons de Lisboa. Uma biografia de Valentim de Carvalho, 1989. Lisboa: Pub. D. Quixote/Valentim de Carvalho), muito desigual no conteúdo mas deveras interessante quanto a reproduções de capas de discos. Por isso, considero que ainda há muito a fazer para o verdadeiro balanço - estético, cultural, industrial e económico - da obra do empresário.

Rogério Santos, blog Indústrias Culturais, 03/04/2003

sábado, 22 de janeiro de 2011

Bastin


Manassés de Lacerda, Reinaldo Varela, Luís Petroline, Júlia Florista, Roberto Catão, José Bastos, Isabel Costa, Almeida Cruz, Eduardo de Souza, Rodrigues Vieira, Delfina Victor, Maria Vitória. Nomes de velhas glórias do fado inscritas na memória popular, sobre a maioria das quais não havia sequer certeza de que alguma vez tivessem gravado a sua arte. O único testemunho documental dessa importante parcela da história cultural portuguesa encontra-se em Inglaterra, entre o espólio de oito mil registos em discos de 78 rpm que o coleccionador Bruce Bastin acumulou ao longo das últimas três décadas. Um acervo dedicado ao fado, mas onde se guarda também algum repertório de revista, de outras formas de música popular tradicional e até encenações históricas - como uma gravação do texto da proclamação da República. Os títulos mais antigos remontam a 1903 e esta é unanimemente considerada a mais valiosa e importante coleccção de fado do mundo.

Um número significativo dos registos em posse de Bastin representam as únicas cópias conhecidas de algumas gravações e só se soube da sua existência através da sua colecção. De algumas delas, o coleccionador inglês guarda até mais que um exemplar.

"É uma colecção deslumbrante que permite reconstituir uma importante parte da nossa história cultural", explica Rui Vieira Nery. "Com ela vamos finalmente conseguir aferir com certeza a evolução do fado que fados se cantavam no século XIX ou nas décadas de 10 e de 20, período de grandes transformações sociais e culturais? Que tipo de formas musicais e poéticas se usavam?"

O espólio encontra-se rigorosamente organizado e catalogado, como de resto foi testemunhado pela primeira delegação enviada a Inglaterra em Novembro de 2001 pelo então ministro da Cultura, Augusto Santos Silva. No parecer resultante dessa primeira visita, Joaquim Pais de Brito, director do Museu Nacional de Etnologia dava testemunho da "importância única deste acervo". Em 2003, uma segunda delegação liderada por elementos da Egeac - empresa da Câmara Municipal de Lisboa que gere a Casa do Fado - aconselhou a compra do espólio, então constituído por cinco mil discos de 78 rpm. Nessa altura, a Casa do Fado possuía apenas 50 registos deste tipo.

Coleccionador compulsivo de discos desde a juventude, Bastin detém começou a perseguir registos de música portuguesa rara na década de 70. Em Inglaterra, nos Estados Unidos e um pouco por toda a parte, onde quer que o circuito dos coleccionadores o levasse. Mas também em Portugal. Em 1990 garimpou uma importante parte do seu espólio num velho armazém do Porto. Centenas de discos postos de parte há anos, desde que novos equipamentos os deixaram de ler. Abandonados por quem não lhes percebia o valor. Bruce Bastin percebeu.

J.P.O., DN, 05/08/2005

Bruce Bastin, 67 anos, é um coleccionador puro. Desde a primeira proposta de aquisição do espólio pelo Estado português, elaborada em 2001 por José Moças, a história fez-se de avanços e recúos, correspondência sem resposta e muita indefinição das entidades portuguesas. Mas Bastin manteve firme a intenção de vender a Portugal, mesmo tendo o interesse de compradores americanos. Porque o lugar do fado, diria, é em casa.

O inglês pediu 1,1 milhões de euros para se desfazer do espólio, preço "muito abaixo do real valor de mercado", assegura Rui Vieira Nery - "algumas destas peças leiloadas no eBay podem valer quase isso". Mas isso foi quando o acervo se fazia de cinco mil registos. Desde então Bastin continuou a somar peças e reuniu três mil registos ao espólio, a maioria achados por José Moças no Brasil. E no entanto, o preço mantém-se, num gesto que todos os actores ouvidos pelo DN - sem excepção - têm por admirável.

O inglês tinha fixado 31 de Julho como data limite para fechar o negócio, porque era é dia de encerramento do ano fiscal em Inglaterra e Bastin quer vender a sua empresa - a editora Interstate Music -, na qual inscreveu o património das suas colecções - no plural, porque a de fado é apenas uma e nem de perto a maior. Nas suas mãos, Bastin tinha, entre outras, a maior colecção de blues/ragtime do mundo, prontamente adquirida por entidades norte-americanas assim que se soube da sua disponibilidade. "Felizmente", nota José Alberto Sardinha, "não estamos perante alguém que precisa de dinheiro. Apenas um homem com quase setenta anos que decidiu retirar-se."

J.P.O., DN, 05/08/2005

sábado, 15 de janeiro de 2011

Os senhores do som

O PRIMEIRO produtor discográfico estrangeiro a operar em Portugal terá sido o americano Sinkler Darby, que ao longo do Outono de 1900 registou, em discos de uma só face e com 15 centímetros de diâmetro, 67 sessões musicais com diversos cantores e instrumentistas na cidade do Porto. Ficou dele a memória, já que não existem indícios de que essas gravações tenham sobrevivido ao tempo. As máquinas e os suportes utilizados na época eram muito frágeis, e o processo de gravação nem sequer dependia ainda da electricidade - gravar um disco era uma mera manobra acústica e mecânica, provavelmente simples, mas não ao alcance de todos. Só podia ser efectuada por escuteiros como Darby, que era engenheiro técnico da empresa londrina Gramophone Company (Gramco). Poderemos chamar-lhe produtor porque lhe cabia apresentar o produto - o que o trouxe ao Porto não foi o acaso, mas a missão de avaliar a qualidade, quantidade e variedade do repertório local, aferindo simultaneamente as possibilidades do mercado autóctone e as opções disponíveis para um representante português dos discos e grafonolas britânicas.

O sistema de gravação e leitura audio fora patenteado por Emile Berliner em 1887. Três anos depois, face ao sucesso dos primeiros discos comercializados nos EUA, a Victor Company - sediada em Camden, New Jersey - e a britânica Gramco estabeleceram um «tratado de Tordesilhas» para dividirem entre si o comércio mundial do novo produto e das grafonolas necessárias para poder usufruir dele. A empresa de New Jersey tomaria a seu cargo todo o continente americano, incluindo o Canadá e as Caraíbas, bem como o Japão e uma parte substancial da Ásia. Por conta da Gramco ficaria a Europa inteira, os impérios russo e otomano, a África e a Índia, o Médio Oriente e a Australásia. China e Extremo-Oriente seriam partilhados entre ambos.

Mas em Novembro de 1903, Max Strauss e Heinrich Zuntz fundaram em Berlim a Odeon, que se veio intrometer neste negócio com uma postura agressiva e alguns trunfos inesperados: por exemplo, a introdução dos discos com duas faces, em 1904. Nesse mesmo ano, a Odeon tornou-se o primeiro fabricante a fazer-se representar em Portugal - mais exactamente, no estabelecimento de Ricardo Lemos, que no nº 304 da Rua Formosa, Porto, vendia bicicletas, baterias e outros engenhos que o novo século trouxera ao nosso convívio. Com o aparecimento de novos concorrentes (a Simplex e a Ideal francesas, as alemãs Favourit e Beka, e mesmo as portuguesas Chiadofone e Luzofone), nos dez anos seguintes os técnicos estrangeiros passaram a ser visita frequente das casas nocturnas de Lisboa e Porto. Eram os mais habilitados a proceder à operação da maquinaria, eram eles quem garantia a qualidade técnica da gravação, mas eram também eles quem assegurava a contratação do artista e do reportório.

No entanto, passou a suceder com frequência, em Portugal como noutros lados, que um artista fosse contratado sucessivamente por várias companhias sem nunca alterar o seu reportório habitual; de onde resultava haver várias etiquetas a vender as mesmas canções do mesmo artista. Por essa e outras razões - uma das quais, a partir dos anos 30, a necessidade de se manterem actualizadas em relação aos gostos musicais socialmente instituídos pela rádio -, as empresas discográficas descobriram a dada altura a figura do produtor/director musical. Na sua versão mais vulgar, eles eram os típicos funcionários, burocráticos e aprumados, que se preocupavam em grosso com as questões da «qualidade» e da «exclusividade», numa época em que os artistas recebiam por cada canção gravada, e não por cada disco vendido.

Texto de JORGE P. PIRES, Expresso, 29/05/1999

sábado, 8 de janeiro de 2011

Base de dados - 78 RPM

http://www.fcsh.unl.pt/fonogramas/pesquisa.asp

BASE DE DADOS DE FONOGRAMAS HISTÓRICOS (78 RPM)
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RCA Victor
RCA Victor Brasileira
Regal
Rouxinol
Rubin
Sinter
Sociedade Fabricante de Discos - Disco Lisboa
Sociedade Fabricante de Discos - Disco Simplex C.B.
Standard
Star
Todamerica
Victor
Voz De Su Amo
Voz Do Dono
Zonophone

(Arquivo Histórico da RDP, Museu Nacional do Teatro e RDP - Museu da Música)


Os discos de 78 rotações por minuto não correspondem ao mais antigo dos formatos usados pelo mercado discográfico mas, depois de uma etapa em que os fonogramas surgiam em cilindros, o disco acompanhou a expansão da indústria da música à escala global. A produção em grande escala na velocidade 'standard' de 78 rotações iniciou-se em 1925, mantendo-se ainda activa depois de o aparecimento do LP (em 1948), desaparecendo dos mercados ocidentais em meados dos anos 50 (sobrevivendo na Índia até aos anos 60). Produzidos no quebradiço 'shellac', e com limitação na duração de tempo das gravações, os discos de 78 rotações e os gramofones que os tocavam contam memórias da música dos anos 20 a 50.