domingo, 5 de junho de 2011

Strauss

Strauss ressuscita fundo de catálogo Sassetti

Setecentas fitas «masters», cerca de dez mil títulos, mais uns quantos milhares de partituras impressas. Uma inteira história da música, sobretudo da portuguesa, que estava votada ao pó nos arquivos da Sassetti. Não está mais, porque a Strauss comprou tudo e propõe-se fazer a campanha de reedições mais cuidada de sempre em Portugal. A Strauss comprou, em 1991, o catálogo Sassetti. Seria uma transacção comercial normal, não fora este «pormenor»: a casa Sassetti existia desde 1848 e por lá passaram alguns dos maiores artistas portugueses dos últimos 150 anos.

É um património musical de valor inestimável, uma inteira fatia da história da cultura portuguesa. Mas a Sassetti foi também uma das empresas vítimas do 25 de Abril, altura em que entrou em regime de autogestão que conduziria ao seu colapso comercial. Alguns artistas, como Sérgio Godinho, Fausto e José Mário Branco tomaram depois a iniciativa de recuperar o material que haviam gravado para essa produtora, tendo em vista a sua reedição em CD. Foram, todavia, iniciativas pontuais e o grosso do riquíssimo património da Sassetti ficou bastante votado ao esquecimento ao longo de toda a década de 80.

A Strauss acabou por comprá-lo por uma cifra que o seu sócio-gerente, Armando Martins, não quer quantificar, quando o negócio foi feito segundo um complexo arranjo de passivos e activos. Armando Martins nem sequer sabia ao certo o que estava a comprar e ficou bastante surpreendido quando foi informado de que, para além das fitas gravadas, era também proprietário de um dos maiores, talvez o maior, espólio de música impressa de Portugal. Agora estas pilhas de partituras, algumas das quais estiveram para ser queimadas à falta de lugar para as guardar, irão voltar a ver a luz do dia, estando prevista a abertura de espaços apropriados à sua venda, nas lojas Strauss.

A disponibilidade do espaço de venda é, de resto, uma das grandes razões que levou Armando Martins a adquirir a herança Sassetti.

Profissional do ramo há 25 anos, tem hoje uma cadeia de lojas de produto acabado, conferindo-lhe ramos de canalização e a possibilidade de relançar um catálogo que estava quase condenado. Quando comprou, no entanto, foi com outras preocupações que a do lucro imediato. De algum modo, o que ele queria era ter aquilo, e até comentou que não se importava de o levar para a tumba. Claro que a ideia não era bem essa, mas que para reeditar mal era preferível não reeditar.

A sua preocupação passou então a ser a de encontrar o homem certo para o trabalho, alguém com suficiente conhecimento e o gosto pelo catálogo Sassetti para o fazer devidamente ressuscitar. Os seus contactos levaram-no então até Hermenegildo Gomes, profissional de rádio há 31 anos, actualmente aos microfones da RDP. Hermenegildo era, para usar as suas próprias palavras, um dos eleitos da Sassetti, uma visita obrigatória sempre que um disco se lançava nessa companhia, mesmo depois do 25 de Abril. Está agora e de há um ano a esta parte a retrabalhar o seu património, secundado pelo músico Carlos Dâmaso, sobre quem recai a tarefa de recuperação e reprocessamento digital das fitas. Têm muito trabalho pela frente. Não será tudo para relançar em CD, mas, segundo estima Armando Martins, o catálogo Sassetti inclui qualquer coisa como 700 fitas «masters», totalizando cerca de dez mil títulos.

A filosofia dos relançamentos em CD, já posta em prática nos títulos lançados de Manuel Freire e José Afonso, é que os discos venham acompanhados de notas biográficas e de contextualização histórica dos registos originais. É uma excepção à regra das reedições geralmente descuidadas que domina o mercado da nossa nostalgia, como não é menos inusitado o princípio de contactar os artistas que rubricaram essas gravações, antes de transpor para CD. Como se sabe, a maior parte dos contratos estabelecidos entre os artistas e as produtoras fonográficas em Portugal, sobretudo antes dos meados dos anos 80, não previam a hipótese da sua renegociação em caso de reedição. Daí decorre que, na maior parte dos casos, os artistas em causa, sendo só intérpretes, ou não auferindo de direitos de autor, vêem hoje os seus trabalhos reeditados sem receberem por isso qualquer contrapartida monetária. Como nos confiou Hermenegildo Gomes, se certos artistas Sassetti recebessem segundo a tabela de antigamente, teriam hoje direito a qualquer coisa como 19 escudos por reedição. Daí a estratégia da Strauss de renegociar com os artistas, propondo nomeadamente a actual regravação de temas antigos e a sua inclusão nas reedições deste últimos, como já aconteceu com Manuel Freire e «Pedra Filosofal». Outra táctica consiste em estabelecer novos contratos com artistas que fizeram carreira na Sassetti para o efeito de lançamentos de discos de inéditos, e é assim que esta semana surge na Strauss «Cantos D'Antiga Idade», de Pedro Barroso.

Luís Maio, PUBLICO, 15/02/1994


A Strauss detinha o catálogo das extintas Sassetti e Zip-Zip. Em 2003 foi adquirida pela CNM.

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