Um rapaz de 18 anos põe-se a caminho de Miramar, em Vila Nova de Gaia, para falar com um vulto da poesia famoso pela reserva e pelo temperamento difícil. O rapaz não se intimida. Bate à porta e explica-lhe ao que vai. Quer gravá-lo a dizer a sua poesia. O "mais difícil" dos poetas, Miguel Torga, recebe-o e ouve-o. "Os poetas são muitas vezes mal interpretados pelos ‘diseurs', porque interpretam teatralmente e perde-se o intimismo dos poemas", argumenta. Mostra-lhe discos de Jean Cocteau para reforçar a argumentação. O rapaz sai da casa de Miramar com um prémio que impressiona. A sua recém-formada editora, a Orfeu, seria lançada com Torga por Torga. "Quando criámos a secção de discos, fui falar obviamente com o mais difícil. É assim que se deve fazer, não é?", lança Arnaldo Trindade, hoje com 77 anos.
Foi precisamente essa ambição e essa força de vontade que nos conduziu, numa tarde de Verão de 2011, a uma casa na Foz portuense. Porque primeiro foi Torga, e, como quem "tinha Torga tinha tudo", chegaram à Orfeu depois dele José Régio, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro ou Ferreira de Castro. Porque depois, quando à poesia se juntou a música, chegou a ele um homem chamado José Afonso, "proscrito" no meio editorial pelos problemas com a censura (a autocensura das rádios e editoras, e censura a oficial do Estado), à procura de casa que o acolhesse. "Era tão maravilhoso, certamente político, mas tão inteligente", que Trindade não hesitou. Em 1968, José Afonso gravou o seu primeiro disco para a Orfeu. "E quem tinha o Zeca Afonso tinha tudo".
Foi na Orfeu que José Afonso gravou o melhor da sua obra, foi na Orfeu que Adriano Correia de Oliveira lançou todos os seus discos, ali ouvimos a estreia de Vitorino, o "Pano Cru" e o "Campolide" de Sérgio Godinho, o "Blackground" do Duo Ouro Negro.
Eis-nos então, 43 anos depois de "Cantares do Andarilho", a ser recebidos numa casa da Foz por um homem enérgico e jovial chamado Arnaldo Trindade. Contador de histórias contagiante, tem um misto de fleuma inglesa e descontracção portuense. Um cavalheiro que, na companhia de um charuto e de arquivos seleccionados, nos conduzirá durante várias horas pela história inacreditável dessa Orfeu de poetas e músicos, de designers e empreendedores diversos, que, de pequena editora independente anexa a loja de electrodomésticos, na Rua de Santa Catarina, em frente ao Majestic, se tornaria um aglutinador e instigador de várias revoluções: estéticas, tecnológicas e de mercado. Tudo seguindo uma política explicada nestes termos simples: "A minha linha era a beleza e a qualidade. Coisas que merecessem a pena ser gravadas. Sempre o melhor". Ele que nunca dirá "eu", privilegia sempre o "nós", definirá assim a Orfeu: "Éramos construtores de uma ideia nova". Ele que, aqui sim, utiliza o eu, era o "catalisador num ambiente fervilhante".
À primeira vida da Orfeu, entre as décadas de 50 e 80, segue-se agora um renascimento. Na recta final de 2010, voltámos a encontrá-la nas lojas (ver caixa). Com Arnaldo Trindade, porém, é pela primeira história da Orfeu que viajamos.
Ver mais longe
Filho de um comerciante solidamente implantado no coração do Porto, Arnaldo Trindade cresceu num ambiente especial. No final dos anos 50, o pós-guerra e um "espírito anti-establishment" criou na Invicta um período de renascimento artístico. Foi criado o Cineclube do Porto, onde Arnaldo Trindade ia todos os domingos, às 11h, ver os filmes que não passavam em exibição comercial: "o neo-realismo italiano, o romantismo francês". Surge também o Teatro Experimental do Porto, de que será um dos fundadores. Havia ainda a escola de Belas Artes e pintores como Isolino Vaz, que seriam depois "resgatados" para trabalhar na Orfeu. Arnaldo Trindade estava no centro de todas estas movimentações. "Ia jantar todas as segundas ao Escondidinho com o Manoel de Oliveira, o José Régio, o Alberto Serpa, o António Lopes Ribeiro", conta. Eram tertúlias organizadas pelo director do jornal "O Primeiro de Janeiro", Manuel Pinto de Azevedo, "onde se discutia tudo": as artes, a política, a vida. Todos contra o regime do Estado Novo, assegura. "Penso que ninguém era do regime naquela altura. Talvez os chamados tachistas... Mas francamente, com o espírito de renovação que havia, quem é que queria ser retrógrado?" Certamente que não Arnaldo Trindade.
Ele que viajava todos os anos até aos EUA para um mês de férias, que conhecia Londres e Paris, tinha muito mundo. Via mais longe: "A grande vantagem de viver em Portugal é que conseguíamos ver o bom e o mau do futuro". Quando o seu pai morre prematuramente e Arnaldo Trindade se vê obrigado a trocar o percurso na engenharia pelo comando dos destinos da empresa de venda de electrodomésticos, começa a aplicar o que lhe mostrava esse futuro àquilo que tinha à sua volta. Portugal, década de 1950.
Grava músicos jazz a viver no Porto e aproveita a passagem de nomes famosos pelas salas da cidade para os registar - aconteceu com Los Paraguayos, por exemplo. Grava-os com as melhores condições que a tecnologia lhe podia então oferecer - um gravador Ampex de quatro pistas -, e contrata fotógrafos e designers para assegurar a qualidade do grafismo das edições.
Tem visão de negócio: para estimular a compra de discos, viaja até França e encomenda milhares de gira-discos; depois lança uma promoção: na compra de dez fonogramas, oferecia um desses aparelhos. Tem "espírito de missão": "Tínhamos a loja de electrodomésticos e isso dava-nos o suporte financeiro. A Orfeu era a minha forma de intervir e a minha paixão. Só foi possível fazê-la em termos de paixão, porque não havia lógica comercial". Assim atraiu os melhores.
Levou Miguel Torga aos primeiros "estúdios" da Orfeu. Numa das cabines da loja, depois da meia-noite para que não houvesse ruído a corromper o silêncio necessário, o autor de "Bichos" leu "Ode à Poesia". Ao ouvir a sua própria voz, emocionou-se de tal forma que a mulher, Andrée Cabrée, teve de o reanimar com uma injecção de coramina.
Depois dos poetas e prosadores, Arnaldo Trindade gravou músicos jazz e bandas portuenses, alargou o âmbito da acção assegurando contratos de distribuição com editoras como a inglesa Pye Records, a americana Tamla Motown ou a Vogue francesa - o que lhe permitiu trazer ao Porto Françoise Hardy, entre outros.
Um espírito familiar
A chegada da Orfeu à história da música portuguesa começa a ganhar contornos de definitiva grandeza quando António Portugal, guitarrista imprescindível na renovação da "canção de Coimbra", e Rui Pato, violista que entre muita actividade acompanhou José Afonso no seu percurso discográfico inicial, alertam Arnaldo Trindade para um cantor extraordinário que surgia em Coimbra. "O grande passo foi quando conheci o Adriano Correia de Oliveira", acentua. Com o cantor de "Trovas do vento que passa", que até à morte aos 40 anos, em 1982, registaria toda a sua obra na editora, anunciava-se a chegada à Orfeu de uma geração que renovaria profundamente a música portuguesa enquanto se assumia como barricada de resistência ao fascismo. Adriano trouxe José Niza - "disse-me que era indispensável, que o contratasse ao preço que pudesse" -, que se tornou peça fulcral da editora, ao lado de José Calvário, enquanto músico, produtor e compositor. E entretanto José Afonso bateu à porta.
A Orfeu diversificou-se e, para dar o passo em frente, assegurou a viabilidade financeira com bandas como o Conjunto António Mafra, "populares mas muito distantes do popularucho que havia na altura", garantindo assim a distribuição junto das comunidades emigrantes portuguesas.
Paralelamente, Arnaldo Trindade organizava em 1969 a primeira convenção da Indústria Discográfica em Portugal, atraindo a atenção da revista "Billboard", por exemplo, ao trazer a Ofir representantes de todo o mundo e bandas como os Foundations, os Status Quo ou os Long John Baldry, onde tocava um pianista louro então chamado Reginald Dwight (hoje conhecemo-lo como Elton John).
Arnaldo Trindade dirigia a Orfeu como empresa disciplinada - "sem precisar de impor nada" -, mas com um espírito familiar, dado ao improviso a um grau recomendável de excentricidade: após a vitória de Sandie Shaw na Eurovisão, com "Puppet on a string", montou uma caravana de seis carros para viajar até Paris, carregá-los de EP e regressar antes que a Valentim de Carvalho os tivesse nas lojas.
Revolução a caminho
José Afonso. Arnaldo Trindade mostra-nos uma dedicatória: "Adversariamente, mas com admiração, José Afonso". Afonso, tal como Adriano Correia de Oliveira, tal como muitos dos autores editados por Arnaldo Trindade, defendia a esquerda revolucionária. Trindade, por sua vez, tinha em mente "uma ideia democrática americana" - hoje, confessa, não sabe como se há-de definir. Estavam, porém, do mesmo lado da barricada. Claramente: "Era preciso ir mais à frente para conseguir mudar o sistema, para conseguir a utopia que sempre defendi, tal como Zeca Afonso, de uma sociedade mais igualitária. A nossa política era a utopia".
Era. Arnaldo Trindade que, enquanto editor, era responsável perante a PIDE pelas edições, assumia essa responsabilidade sem constrangimentos. Até porque, apesar de "em momentos mais complicados" ter de correr a esconder os discos debaixo da cama dos filhos, o seu "único disco proibido" foi, conta, "Je t'aime, moi non plus", de Serge Gainsbourg e Jane Birkin - apareceu o oficial da PIDE e apreendeu-o, mas não sem antes reservar "três ou quatro para si".
Era uma utopia? Sim, repetimos. Arnaldo Trindade não olhava a custos. José Afonso e Adriano Correia de Oliveira tinham generoso salário mensal, com obrigação de gravar um novo álbum a intervalos regulares. Os músicos ambicionavam o melhor e era o melhor que a Orfeu lhes oferecia. "Numa altura tínhamos o Zeca a gravar no Chateau Herouville [nos Strawberry Studios, onde haviam gravado antes, por exemplo, os Rolling Stones], com o José Mário Branco a produzir; o Adriano em Londres na Pye Records; o [José] Cid na Vogue, em Paris".
"Cantigas do Maio" (álbum de 1971 de José Afonso, onde encontramos "Grândola vila morena" ou "Canto da Primavera") custou "um milhão de escudos", impressiona-nos. "Mas é o melhor disco português de sempre", sorri, orgulhoso. E isso, claro, é para ele o mais importante.
Quando se preparava para editar "Operário Em Construção", LP de 1972 em que Mário Viegas, acompanhado de José Calvário (compositor e orquestrador residente da Orfeu), José Luís Tinoco e José Niza, interpreta poesia de Vinicius de Moraes, Bertold Brecht ou Manuel Alegre, vários amigos avisaram-no que "estava louco", que era uma imprudência. "Mas não gravo porquê?, isto é tão bonito", retorquiu. E gravou, e editou.
Dois anos depois, o 25 de Abril foi anunciado com "E depois do adeus" e "Grândola vila morena". Curiosa coincidência: duas gravações da Orfeu.
Na sua história, além de todos os anteriormente referidos, está a epopeia em rock sinfónico de José Cid, "10.000 Anos Entre Vénus e Marte", ou canções vitoriosas no Festival da Canção - "E depois do adeus", "Festa da vida"http://www.blogger.com/img/blank.gif, por Carlos Mendes, ou "Madrugada" por Duarte Mendes. Fica uma história ainda por redescobrir, a dos poetas que foram a primeira paixão de Arnaldo Trindade.
Quando encerrou a Orfeu, não sentiu qualquer angústia, qualquer saudade. Não tem nenhum disco da editora a que dedicou três décadas de vida. Tem livros e dedicatórias: "Arnaldo Trindade, a quem tanto deve tanta poesia", assinado: Ary dos Santos.
Interessam-lhe as memórias e passá-las a quem o procurar. "O maior orgulho foi ter-se conseguido fazer", diz. "Tudo o que nasce morre, e nós morremos no zénite". E agora renasceram.
Mário Lopes, Ipsilon / Público, 04/08/2011
As versões de José Afonso em "REintervenção", "Onde Mora O Mundo", de JP Simões e Afonso Pais, e reedições de Mário Viegas e Mena Matos deram arranque à nova Orfeu. Seguem-se Vítor Rua e Pedro Esteves.
Na recta final de 2010, anunciou-se o regresso. Orfeu: todos recordávamos o logótipo dos discos de José Afonso e foi precisamente por ele que começou o renascimento. A 2 de Agosto de 2009, o autor de "Os Vampiros" completaria 80 anos e a Movieplay desafiou Pedro Passos a organizar-lhe uma compilação de homenagem. A falta de tempo adiou o projecto, mas deixou uma ideia a germinar. Porque não reactivar a Orfeu?
A ideia tornou-se realidade com "REintervenção", o álbum inicialmente idealizado, e de "Onde mora o mundo", de JP Simões e Afonso Pais. Entretanto, surgem também as reedições de "Operário em Construção/País de Abril", com poesia de Vinicius de Moraes, ou Manuel Alegre dita por Mário Viegas, e de "25 de Abril ‘Confidencial'/Proibição de Voltar à Direita", do humorista Mena Matos. Os primeiros lançamentos revelam a estratégia da nova Orfeu. Pedro Passos, A&R: juntar, "às novas edições, a recuperação dos discos antigos", muitos nunca disponibilizados em CD. Na calha pode estar o lançamento de uma "colecção de poesia, dita pelos próprios autores", parte importante e por agora indisponível do catálogo original.
Para a "rentrée" estão marcados os lançamentos de "Heavy Mental", de Vítor Rua, um improviso em guitarra de 18 cordas construída pelo músico, e "Mais Um Dia", de Pedro Esteves, um dos músicos de "REintervenção".
Mário Lopes / Público, 04/08/2011
Esperava outra reacção do José Afonso...
O choque foi muito grande, porque eu fazia umas cantiguinhas um bocado para o lírico e, depois dessa conversa, fui para casa e fiz uma série de cantigas assim de rajada, de um dia para o outro. Uma delas, o "Cantigueiro", que foi a que mais me marcou. O Zeca achou graça, adoptou-a e, quinze dias depois, lá estava eu a gravar um disco para a editora onde ele gravava: a "Arnaldo Trindade".
Era uma editora fora do comum...
O senhor Arnaldo Trindade era um comerciante e importador de electrodomésticos que gostava muito de música. Gostava tanto que pagava o ordenado ao José Afonso e ao Adriano Correia de Oliveira para eles se manterem na editora. E fazia-o porque era amigo deles e pelo gosto de não perder as coisas que eles compunham e cantavam...
Não haveria muito lucro...
Quando o Arnaldo Trindade gravava José Afonso e Adriano Correia de Oliveira ele assumia logo à partida que os discos iam ser proibidos. Os que eram divulgados vendiam-se bem mas, feitas bem as contas, duvido que lhe desse lucros. Darão agora, e a gente que não merece. Além disso, os discos que eram proibidos não rendiam direitos de autor, o que fazia com que os ganhos fossem mínimos... Depois, o meu disco saiu e teve uma passagem oficial na Renascença e uma outra passagem na Emissora Nacional. A seguir foi proibido.
Entrevista de Samuel ao Jornal Folha de Montemor
Página sobre Arnaldo Trindade
http://arnaldotrindade.no.sapo.pt/EDITOR DISCOGRÁFICO DE MÚSICA PORTUGUESA NOS ANOS 50,60,70 E 80 - FUNDADOR DA ETIQUETA ORFEU
Foram tantas, de tão diferentes tipos musicais, as edições que foram da responsabilidade do editor Arnaldo Trindade, desde a década de 50 até à de 80, que nos é impossível mencionar todas, no entanto ficam aqui alguns nomes gravados. Será de salientar que se a Orfeu não tivesse existido, provavelmente,muitos deles nunca teriam saído do anonimato, ou pelo menos algumas das suas obras nunca teriam sido conhecidas, o que teria sido uma perda irreparável para a música portuguesa:
Adriano Correia de Oliveira - José Afonso - Vitorino - Sérgio Godinho - Fausto - Paulo de Carvalho - Carlos Mendes - Fernando Tordo - Maria da Fé - José Cid - Ouro Negro - Raul Indipwo - Teresa Silva Carvalho - Quim Barreiros - Duarte Mendes - Tónicha - Conjunto António Mafra - Samuel - Pop Five Music Incorporated - Arte & Ofício - Conjunto Maria Albertina - José Calvário - Pedro Osório - Florência - Quinteto Académico - Conjunto Pai e Filhos - Padre Fanhais - Júlio Pereira - Luís Cília - Teresa Tarouca - Padre Fanhais - José Jorge Letria - Heinz Worner - Walter Behrend - Trio Los Paraguayos - Lenita Gentil - António Portugal - Conjunto Sousa Pinto - Very Nice - João Braga - Tony de Matos - José Freire (...)
Mas que grande arrogância! Editoras há muitas ... Os artistas que referem nao precisavam desta editora para sair do anonimato . O que precisavam era que lhes pagassem os royalties. Estes aldrabões nao pagam a ninguém !
ResponderEliminarOlá amigos.
ResponderEliminarNo ano de 1958 tive a honra de conhecer o Sr. Arnaldo Trindade, o cunhado Sr. Albuquerque e o "Arnaldinho" na primeira vez que, da Covilhã, fui ao Porto afim de fazer exame para conduzir automóveis. Estes Srs. apresentaram-me o Fadista Sr. Carlos Ramos e numa outra oportunidade o António Mafra. Deste conjunto guardo com muita estima um disco com mais de 60 anos a marcha da "Borletti" na qual faziam o acompanhamento à Vocalista Adelina Silva com música e letra de Ramos Lopes, no encerramento de uma reunião de trabalho de todos os distribuidores e colaboradores das máquinas de costura "BORLETTI" representadas em Portugal pela Arnaldo Trindade & Cia. Ldª.
Que saudades e boas recordações destas importantes Personalidades.
Aos Familiares um abraço
Zé Rodrigues
Covilhã/S. Ant. dos Cavaleiros