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Não pretende o presente texto ser uma cronologia científica e linear sobre o mercado fonográfico — concretamente em vinil — na capital portuguesa, mas sim um aperitivo para uma exploração independente.
[1878-1899: Quando o fonógrafo era alta magia]
Uma das primeiras respostas que recebi do xerife desta mesma plataforma, quando o entrevistei para o meu documentário "Música em Pó", foi uma brilhante referência a uma analogia escrita na revista Wired. Hoje difuso na memória, o citado jornalista comparava aqueles que preferem pagar e beber água engarrafada vs. os que acedem simplesmente a água da torneira, com o ouvinte que consome música em vinil vs. o que contenta com o hoje gratuito e estandardizado MP3. Recuando até ao último quartel do Séc.XIX na cidade de Lisboa, também a música gravada foi timidamente introduzida aquando das políticas de saneamento para a água potável.
Temos de nos remeter a uma época em que, até então, as “editoras” eram meramente marcas que imprimiam partituras e pautas musicais, já que o fonógrafo só é pela primeira vez apresentado em Portugal no mês de Março de 1878. Há exactamente 141 anos, o velho cilindro de cera rodava pela primeira vez em solo português, e segundo o livro A gravação sonora e a TSF em Portugal, no ano seguinte os intervalos de espectáculos do Teatro da Trindade ainda publicitavam o fonógrafo como “sessões de alta magia”.
Mesmo assim, tardou para que ainda no final do século XIX surgissem os primeiros estabelecimentos comerciais dedicados especialmente à venda de fonógrafos e cilindros, como a empresa dos dois americanos J. F. Sheldon e John Morris, o Salão do Phonógrapho, instalado em 1893 em plena Avenida da Liberdade. Numa Lisboa ainda rural mas já consciente dos truques deste novo fascínio musical, a posse de um fonógrafo próprio ainda era limitado a famílias abastadas na cidade e o seu comércio ainda não era de todo feito de forma massiva. Leonor Losa no seu livro "Machinas Fallantes" coloca até a possibilidade dos fonógrafos serem divulgados em Lisboa como uma máquina falante pelo conteúdo meramente vocal dos seus cilindros.
A última década deste século fica musicalmente marcada pela mutação total da forma de se ouvir som gravado, passando do simples fonógrafo para o gramofone de discos planos, principalmente de goma-laca.
[1900-1920: Quando as editoras eram etiquetas]
Na tese de mestrado de Ricardo Gil Portela, História da Gravação Sonora em Portugal, em 1900 o britânico William Sinkler Darby “e outros funcionários da Berliner, efectuam a primeira expedição sonora em solo lusitano promovendo o gramofone” e os seus discos, estes ainda com o diâmetro de 15 cms e de uma só face. No total — e pela cidade do Porto — nesta inaugural captação foram feitas 82 gravações sendo que nos arquivos da EMI (antiga His Master’s Voice) só sobreviveram 67.
A gravação tornar-se-ia mais recorrente nos anos seguintes e edição discográfica nacional germinaria especialmente ao som de declamações de teatro, cançonetas (discos meio-cantados, meio-falados), fado, anedotas (com o peculiar nome de “excêntricos“), fazendo com que a fruição musical arrebitasse e pudesse ser exclusivamente auditiva pela primeira vez nos últimos 100 anos.
“Meanwhile in 1904 Berlin”, a Odeon inventava os discos com duas faces — tornando-se até no primeiro fabricante de música gravada a fazer-se representar em Portugal — enquanto “a Columbia Gramophone apresentava ao publico, em 1907, um disco de face dupla com a espessura de um centímetro. Era uma novidade tão espectacular que a Columbia deu ordem aos seus vendedores para atirarem com os discos ao chão, provando assim, aos clientes estupefactos, como os discos de face dupla eram inquebráveis”, segundo as palavras de Lourenço da Silva na Grande Aventura da Gravação de 1977.
Acompanhando o frenesim mas com uma oferta bastante rudimentar, dos agentes que na altura comercializavam fonógrafos, gramofones e discos importados na capital, há registos da Casa Favorita, a J. Castelo Branco, a Companhia Franceza do Gramophone, ou a Société Pathé Frèves. Inteiramente confederados a estes agentes, surgem entre 1904 e 1915 também as primeiras etiquetas portuguesas como a Simplex, a Luzofone, a Ideal, a Chiadofone ou a Disco Dalia. Como se fosse um “proto-digging”, o cliente podia pela primeira vez dirigir-se a um lugar físico, pedir o catálogo que queria folhear e no próprio dia voltar lá para o obter. Escolhido o disco que queria comprar, poderia obtê-lo só no mês seguinte, pois teria de ser importado.
Com uma avidez de ganho “à lá senhorio fuinha em pleno 2019”, a Chiadofone tem logo talvez dos primeiros casos de pirataria conhecidos em Portugal, onde colava as suas próprias “labels” por cima dos rótulos originais, vendendo como seu.
A primeira década deste novo século termina com Edison a sair vencido da batalha audiófila encerrando a sua fábrica de cilindros na Europa. Europa essa, que sofrerá de uma grave quebra nas gravações e fabrico de discos, devido à 1ª Guerra Mundial.
Se este texto fosse um guião para um filme de época, o longo plano geral com a apresentação do Golias de toda esta história aconteceria em 1914, quando a Valentim de Carvalho compra a antiga loja de instrumentos e pautas musicais, Salão Neuparth, na Rua Nova do Almada, numa altura em que a sonorização moderna estava mesmo ao virar da esquina.
[1920-1948 Quando o Disco ainda não era cultura]
É inegável aos olhos de hoje que os “Roaring Twenties” entraram atempadamente a Lisboa, tornando a cidade num novo pólo cosmopolita de noite, prostituição, jogo e drogas. Claro que a noite cá não era, por exemplo, tão inter-racial como a parisiense, mas a partir de 1926 a ideologia fascista foi crescendo entre os conservadores contra a decadência dos supostos bons costumes, numa autêntica guerra à então apelidada “hora negra” regada a Charleston, Swing e Foxtrot. Não nos podemos esquecer que nesta altura, não só de novos-ricos se movia a cultura da cidade, como também vários refugiados estrangeiros das Primeira Grande Guerra. Lisboa, não sejas racista!
A própria polivalência dos espaços nocturnos da época assemelha-se à miscelânea de chamarizes das discotecas dos anos 90, albergando de manicuras a salas de bilhar, de cabeleireiros a salas de leitura. Estima-se que nesta década a cidade passa a ter mais de 500.000 habitantes e 20% da população activa trabalhava na rede dos clubes nocturnos, mesmo que a repressão do regime tentasse passar estes números debaixo do tapete.
Chapinhando naquela inicial analogia aquática com que comecei este texto, equiparo a nova moda importada dos Estados Unidos, os cocktails — como um aprumar de sabor — com a introdução da gravação eléctrica na até então insossa música, detonando uma economia em torno da música… ou um pequeno mercado, vá, pois ainda estávamos muito dependentes da indústria estrangeira.
Ou seja, não tendo ainda industria própria de produção de discos, o facto de termos discos portugueses tão antigos deve-se às empresas estrangeiras que penetraram o mercado português e também disponibilizavam repertório lusófono. Estas editoras traziam técnicos de som de fora, que num par de dias tentavam gravar o máximo de intérpretes portugueses seja em quartos de hotel, lojas, etc., transportando depois as matrizes e produzindo os discos nos seus países de origem, regressando a Portugal para os vender.
No início dos anos 20, já as marcas como a RCA e a Phillips estavam representadas em Portugal nos Grandes Armazéns do Chiado, e em 1927 o Grande Bazar do Porto – agente exclusivo da His Master’s Voice em Portugal – abre uma sucursal na Rua Augusta para venda exclusivamente de produtos da marca, como rádios, discos e gramofones. Outra poderosa, a editora Columbia, passaria a ser representada pelo Salão Mozart, junto à Libraria Bertrand.
A Valentim de Carvalho começa o seu império na terceira década quando, a partir do primeiro andar no espaço anteriormente referido, começa a gravar directamente para matrizes de 78rpm. Nesta primeira fase, ainda não era possível ouvir prontamente o que era gravado, e os discos tinham de ser enviados para as fábricas de prensagem da EMI em Inglaterra. Esta espécie de “test-pressings” demoravam cerca de duas semanas a chegar, e isto quando os barcos não eram afundados pelo conflito da Segunda Guerra Mundial.
É somente com o aparecimento do disco em vinil que a música gravada se torna em objecto cultural por cá, aliado a um carácter cosmopolita, moderno e “cool” anteriormente ocupado pelo glamour da noite, agora “proibido” por Salazar.
[1948-1974: Quando as lojas eram discotecas]
O fim da Segunda Grande Guerra coloca a música no patamar de escape primordial para alegrar o dia, principalmente através da rádio. É então que o fabrico próprio é finalmente inaugurado no país, primeiro com a Fábrica Portuguesa de Discos em 1946 no Porto — como explica José Leite do blog Restos de Colecção — tendo como objectivo a produção industrial de discos, denominando-se Rádio Triunfo, e depois em 1952, a fábrica da Discos Ibéria, na Rua 1º de Dezembro, em Lisboa. Esta primeira produção de fonogramas é ainda maioritariamente baseada em discos de “shellac” de 78rpm, bastante frágeis e limitados na sua duração, mas já com a capacidade de fabrico de cerca 180000 discos/ano.
A transição para as rotações hoje padronizadas dá-se com a microgravação de discos de 10 polegadas a 33 rotações que pouca expressão teve no mercado nacional. É somente no final desta década que as fábricas iniciam o corte de acetados e produção das matrizes de cobre, conseguindo já produzir uma média de um disco de 7 polegadas a cada 15 segundos, dando o claro triunfo ao pequeno formato, mudando a o mercado fonográfico.
A fluorescência adolescente do pós-guerra é agora considerada como público-alvo e comprador, e o pobre poder de compra nacional faz do novo 7 polegadas um produto “fixe” e acessível. Ainda hoje encontrando os pequenos discos em feiras é comum a preservação das dedicatórias nas contracapas, o que reflecte o seu cariz de prenda comum entre a população das várias classes sociais.
Com o virar da década gera-se na cidade um leque de editoras variado e atento à nova música moderna: para além da portuense Rádio Triunfo passar de fábrica a editora, (e distribuir a Atlantic, Warner, Elektra, CBS, Warner Bros, etc), virando a primeira líder de mercado nacional numa indústria recém-nascida; formam-se editoras como a Tecla (que chegou a ter uma fábrica em Sintra por um ano); a Imavox (constituída a partir do Rádio Clube Português); a Riso & Ritmo; a Zip-Zip; a Marfer (editora espanhola, pertencente à Grande Feira do Disco na Rua Forno do Tijolo); ou a Discostudio especializada em Jazz, e a já na época centenária Sassetti da Rua do Carmo, etc. Do Porto surge a Orféu, a Alvorada, a Rapsódia, a Roda, entre outras.
A própria Valentim de Carvalho cria contra a vontade da “chefe EMI” a sua primeira fábrica de discos em pleno Campo Pequeno no início da década de 60, prensando não só o seu predominante catálogo como as por si representadas His Master’s Voice, Columbia, Parlophone ou Decca. Paralelamente, funda também a VC Angola ainda que não a comercialize em Portugal. Se por um lado o país começava a gritar em ’61 “Angola é Nossa!”, o mercado respondia uma espécie de “mas que se f*da a sua música!”.
Como que numa premonição comercial do que hoje a capital se tornou, a editora Estoril tinha a particularidade de se dirigir ao (na altura!) reduzido número de turistas que visitavam a cidade, contendo na contracapa frases como “Take Portugal back with you in a record of its music!”.
O autor Afonso Cortez refere que é com os anos 60 “que mais ou menos se solidifica uma cultura pop sustentada por uma nova faixa etária, jovem e consumidora. É nessa altura que começam a abrir lojas direccionadas especificamente para esse público”. A zona do Chiado tinha-se tornado no que é hoje, apetrechada de lojas — chamadas discotecas — como a já referida Sassetti & C.ª; a Discoteca Roma, na avenida com o mesmo nome, assim como a Sinfonia; a Compasso em Campo de Ourique; a Discoteca do Carmo; a Discoteca Melodia ou a Discoteca Universal que tinha como funcionário José Pereira, pai de Tó “DJ Vibe” Pereira. A Discoteca Universal chegou a ter uma passagem de modelos com trinta manequins em 1970, com Henrique Mendes como “DJ”, levando ao engarrafamento da Rua do Carmo.
Se por um lado a estereofonia em Portugal chega aos discos em 1969 com um dos inúmeros LPs do Conjunto António Mafra — graças a um equipamento topo de gama adquirido na Suécia — como a consequência de uma transformação musical global e interesse do consumidor, a portabilidade introduz ao mesmo tempo no país a cassete e o falhado cartucho.
Nos últimos anos do regime e após a queda da árvore moribunda de Santa Comba Dão, a rebeldia nacional e internacional tem um papel fundamental no conteúdo musical: desde as famosas histórias de temas nacionais censurados até à apreensão de discos internacionais, como o explícito Je T’aime Moi Non Plus que Arnaldo Trindade bem se recorda do oficial da PIDE apreender mas não sem antes reservar uns três ou quatro para si.
[1974-1984: Quando o Boom não é só do Rock]
A cronologia do mercado fonográfico em Lisboa pode ser dividida por duas grande fases distintas: a primeira corre até ao 25 de Abril, onde a implementação das “discotecas” está intrinsecamente ligada ao surgimento das editoras; e após a revolução, em que a importação do diferente e a busca pelo raro lideram as opções do cliente.
No calor de 1974, há que acrescentar que o mercado discográfico parcialmente estagnou no país, consequência talvez das mudanças direccionais e políticas nas rádios e do banir da música anglo-saxónica em prol da música de intervenção. Isto pode explicar também a praticamente inexistente música disco e funk feita em Portugal. Poucos anos depois, surge o Boom do Rock e a electricidade das guitarras torna-se o som de eleição.
É com o final da década de 70 e início da seguinte que o “bicho-papão” das multinacionais se instala em Portugal, com a Polygram (anteriormente Phonogram/ futuramente Universal), a EMI, ou a CBS (posteriormente Sony) a fortalecerem a distribuição e comercialização de repertório internacional e a aumentar o investimento em repertório nacional.
O documentalista João Carlos Callixto afirma que o “denominado “boom” do rock português desempenhou nesta mudança de processos um papel primordial. Em primeiro lugar, porque a sua importância em termos de “géneros” musicais não se restringiu ao rock, mas sim a praticamente todos os géneros. Depois, porque este foi de facto um “boom” em termos de indústria, coincidindo com a instalação definitiva das multinacionais em Portugal — apenas a PolyGram operava já entre nós, há cerca de uma década — e com a consolidação do formato LP como o de eleição para a edição de novos trabalhos — algo que se tinha iniciado na segunda metade de 70s.
Esta consolidação do LP veio de encontro também à mudança no paradigma da audição musical no seu geral. Se por um lado, a música de baile deu lugar ao conceito de concerto que hoje conhecemos, já segundo Callixt “antes de 1974, grosso modo, a audição de música gravada era muitas vezes um acto social de partilha (como acontecia com as sessões para ver televisão). Em meados de 70s e especialmente a partir da segunda metade da década, a maior oferta em termos de lojas e a vulgarização da cassete áudio (e do Walkman, a partir de 1979, com efeitos claros na juventude portuguesa da década seguinte) veio potenciar a cópia doméstica de forma prática, transformando a audição de música gravada cada vez mais num acto individual”. Em 1981, é revelado que a pirataria de cassetes representa quatro quintos do total de cassetes vendidas em Portugal.
Outro factor determinante para o evoluir do comércio da música gravada em Lisboa deve-se, segundo o autor Afonso Cortez, “a uma grande mudança estrutural na cidade que está ligada ao fenómeno dos centros comerciais. Nos anos 60 e 70, as discotecas, como a maior parte das lojas, eram, como se diz, “de rua”. Com a vulgarização das galerias comerciais durante a década de 70, e com o aparecimento dos centros comerciais nos anos 80, e temos de associar isso à decadência da Baixa, ao aumento de poder de compra, à acessibilidade desses novos espaços e ao comodismo dos portugueses, as discotecas começam a abrir no interior desses locais. O C.C. Amoreiras é um bom exemplo disso. É lá que, por exemplo, vai abrir a One-Off.
A bifurcação entre a música independente destes anos e o repertório das majors reflecte bem a diversidade nas lojas de discos da cidade. Para além de algumas já referenciadas ainda continuarem no activo, como a Dargil dedicada ao Jazz, a Sassetti ou a Melodia, etc., e tornam-se novos pólos de comunidades musicais: a Motor (consequentemente Bimotor); a Dansa do Som, também editora do proprietário do Rock-Rendez Vous Mário Guia; no Bairro Alto a Contraverso e a El Dorado, mais tarde a Lollipop; a Palladium; VGM no Príncipe Real; ou a Hippodrome.
Na faixa do lado, estes foram os anos que deram à cidade editoras como a Rossil — com muito do Disco Sound internacional –; a Edisom ou a Cachet [NB: Cliché Musica] do Belzebu dos Telectu; a Rotação [NB: etiqueta da Rossil] ou a Transmédia de Nuno Rodrigues; a Metro-Som ou a Discossete; mas também as até hoje ignoradas Electromóvel de Armando Carrondo e IEFE de José Augusto, dois dos primeiros editores e comerciantes de musica Africana em Portugal.
É com eles que a cidade abre finalmente o seu mercado à música do continente africano com os primeiros fluxos de migrantes e refugiados de uma Guerra Colonial. Sebastião Delerue da actual Mar & Sol Recordsaponta que a Electromóvel e a IEFE “estabeleceram-se na zona do Poço dos Negros na década de 70 e 80, e ai formou-se uma grande comunidade de emigrantes luso africanos, principalmente cabo-verdianos. Tudo montado para um desenvolvimento cultural. No n.º72 da Rua de S.Bento, o Armando tinha a sua loja de discos e mais acima no 424-426 existia a IEFE. Era lá que grande parte destes músicos se juntavam, e aí apareciam as oportunidades de negociarem um disco. Naqueles tempos, faziam-no maioritariamente para ter uma maquete na mão que os puxasse para dar concertos, pois era daí que ganhavam um dinheirinho, refere o editor.
[1984 – 1999: Quando as lojas eram comunidades]
O aparecimento do CD fez com que os custos de produção das editoras diminuísse, só que no princípio da cadeia-alimentar várias foram as fábricas de discos em vinil que não aguentaram, pois estamos a falar de actualizações de maquinaria na ordem do milhão de contos.
No topo da hierarquia discográfica, a Valentim de Carvalho abre dezenas lojas em todo o país — em Lisboa, a central loja no Rossio passaria mais tarde para um estabelecimento de três andares no Chiado – enquanto a BMG Ariola (anteriormente da RCA) surge directamente para o pódio, sendo depois incorporada pela Sony.
Um caso particular desta época é a Vidisco. A Vidisco surge na Pontinha em 1986 — como reacção às estratégias das multinacionais ocidentais orientadas para o mercado e cada vez menos para o público – com um catálogo de música “pimpa” dirigida principalmente à comunidade emigrante e com especial ênfase no produto musical vendido para ser ouvido no carro, principalmente em estações de serviço, como mais tarde aconteceu com a Ovação ou a Espacial. Em 1996, a mesma Vidisco compraria [NB: a Kaos era distribuída pela Vidisco] a pioneira KAOS Records, pioneira no house nacional.
O Grande Incêndio do Chiado de 1988 marca uma involuntária viragem na rota da venda de discos de vinil em Portugal. Descendo as “escadas” de volta ao mercado independente, Afonso Cortez desvenda outra novidade da década de 90 na cidade: “as lojas de compra e venda de material em segunda-mão. Foi o caso da Carbono, no C.C.Portugália, da Jukebox, no C.C. Galeria 80, na Rua Morais Soares e da Discolecção, no C.C.Amazónia. Essas lojas são frequentadas por outro tipo de clientela, pessoas que, por diversas razões querem despachar os discos – seja para comprar CDs ou droga – e por coleccionadores e curiosos que passam a ter acesso a música das décadas anteriores.”
Dos anteriores centros comerciais, a venda de discos fazia-se agora maioritariamente em menores galerias comerciais e rendas mais acessíveis. Na Estação do Rossio, abre a Xaranga, segundo Afonso Cortez “uma loja especializada num género, metal, algo inédito até então”; e a Torpedo que segundo o autor possuía “muito material praticamente desconhecido em Portugal até então, acabaria por ser mais do que uma loja ao funcionar como um ponto de encontro – o facto de estar na estação central ajudava a isso. Esta loja tinha algumas particularidades, como o facto de ser possível afixar flyers e cartazes de concertos underground, anúncios a recrutar músicos para bandas e pôr à venda demo-tapes e fanzines. Por essas e outras razões, esta loja teria um papel crucial para o desenvolvimento de algumas subculturas”. Passaria depois para o Centro Comercial da Mouraria antes de fechar, e a conhecida cara atrás do balcão foi no ano passado alvo de uma chocante revelação.
Elenca ainda Afonso Cortez que “quase no final da década, abre ainda a Godzilla, loja de roupa (rés-do-chão) e discos (primeiro andar), na Rua dos Douradores, que consegue trabalhar com várias cenas em simultâneo ao cruzar punk/hardcore, hip-hop e reggae na mesma loja. Acaba por funcionar também como ponto de encontro e espaço de divulgação. Era aí que, por exemplo, se encontravam edições de hip hop português. Mais tarde muda de sítio e passa a chamar-se King Size”.
Edgar Raposo, editor na Groovie Records, ilumina a memória detalhando, “recordo me bem da Contraverso, na Rua Augusta, as do C.C. Portugália como a Neon ou a Carbono (que mais tarde passaria para a actual Rua do Telhal), a ANANANA, a Illegal. Ainda uma das mais importantes era a Discolecção do José Gamito, no Hotel Amazónia, que foi a raiz da loja agora nas Escadinhas do Duque, do Vitor Nunes.”
Para os mais novos que estejam a ler desse lado que não tenham experienciado, gostaria de acrescentar que o sentido de comunidade musical tão presente hoje em grupos de Facebook, WhatsApp, fóruns especializados, blogs, etc., na altura transpirava por todos os poros destes espaços e esta é a sua principal importância em toda esta história. No outro lado da moeda, havia o Top+ onde eram divulgados os tops de vendas musicais semanais. Eram também inauguradas a Virgin Megastore nos Restauradores em 1996 e a primeira loja Fnac no Colombro em 1998.
[2000s: Quando a música não está de passagem]
Se a cidade de Lisboa é hoje uma meca apropriada para diggin’, vários foram os intervenientes que pavimentaram o caminho. Para além de todos os anteriormente referidos, a cidade viu desde a década de “zero-zero” o abrir e fechar de portas de espaços como as religiosas Trem Azul ou Supafly, até às mais efémeras Bloop Vinyl Shop, Magic Bus, Twice, entre outras.
É inegável também o legado criado por vários fornecedores/ dealers/ vendedores e armazéns privados que abasteceram nas últimas cinco décadas não só lojas, como DJs, rádios ou melómanos; e mesmo o culto da Feira da Ladra, não só como mina de ouro de relíquias mas como ponto de encontro de tantos “vinyl heads”.
Em pleno 2019, a aplicação Vinylhub do Discogs contabiliza 22 lojas de discos independentes na cidade de Lisboa, e decidi não as referir todas como tenho desenhado este texto até agora pois se o leitor clicar neste link visitará uma nova forma de comunidade a que me referi em cima com um acesso elegantemente mais pormenorizado.
Lisboa vive inegavelmente hoje um sucesso turístico ímpar, paralelo a um fervor musical que não só se reflecte na música gravada e vendida, mas também na transmitida quer seja por excelentes divulgadores e DJs ou na quantidade de rádios “não comercialóides” que a cidade alberga. Afonso Cortez refere que talvez a única excepção à indiferença destes novos visitantes da cidade por lojas de discos “seja o mercado de discos africanos e brasileiros, que por causa de umas reportagens geraram algum interesse internacional e há quem venha a Portugal à procura desse material. Hoje em dia há discos cabo-verdianos e angolanos em quase todas as lojas, e são caros. Há poucos anos só apareciam em feiras e eram baratos…”. Se Edgar “Groovie Records” Raposo — com a sua loja em plena Rua de São Paulo — duvida que os turistas “ultrapassem os 5%” dos seus clientes, Rodrigo “Trol2000” Alves — DJ e responsável pela Peekaboo Records no Centro Comercial do Chiado — contrapõe que “nestes quase dois anos de loja posso dizer que quase 99% das pessoas que aqui entram são turistas”.
Falei com dois editores europeus que escolhem regularmente Lisboa como terreno fértil para as suas escavações vinílicas: o suíço Cyril Yeterian da Bongo Joe Records e o belga Seb Bassleer da Rebel Up. Cyril diz-me que “a cidade está ligada à própria música que os coleccionadores procuram, como a música brasileira ou música luso-africana, e que muitos discos bons foram gravados e produzidos na cidade”, enquanto Seb procura “maioritariamente discos dos PALOP no período pós-colonial, embora os preços tenham subido nos últimos anos” dando no entanto graças a algumas editoras que têm reeditado a música esquecida e censurada. Estará certamente a falar da Armoriz, da Mar e Sol e da própria Groovie Records, etc. Seb considera também que o recente interesse no país “tem tido um efeito positivo na cena musical portuguesa e luso-africana, seja em clubs, seja em promotores, festivais lá fora“, já Cyril admite que “quando mais vou a Lisboa mais me afasto do centro da cidade, pois também encontro discos incríveis nos subúrbios”. Não sendo de todo o caso, o perigo do neocolonialismo quando maldoso neste diggin’ só é suplantado pelo snobnismo actual de alguns lojistas. Desculpem, era só para ter a certeza que ainda estavam acordados!
E finalmente, será que o papel das actuais lojas continua pulsantemente ligado às novas editoras como há 100 anos? Edgar Raposo desabafa: “Nós sempre recebemos bem todo o tipo de editoras nacionais a fim de ter os seus discos à venda, seja a Cafetra, Rastilho, Lovers&Lollipops, CelesteMariposa, Mad About Records, Chaputa, ZeroWorks, Infected, War Arts, etc…”, o mesmo se passa com a Peekaboo de Rodrigo “desde que faça parte do universo da loja“ como é o exemplo da Interzona 13, a Percebes ou a Extended, pois “principalmente são os turistas os que procuram coisas portuguesas. Os portugueses se calhar compram mais directamente às editoras ou pelo bandcamp”.
Foi propositada a ocultação da mastigada conversa “advento internet vs comércio local” ou “qualidade sonora do vinil vs. mp3”, se a música é hoje em dia consumida principalmente de forma binária em colunas de telemóvel, só prova que não interessa se a água que bebemos é engarrafada ou da torneira, desde que nos mantenhamos hidratados.
EDUARDO MORAIS, RIMAS E BATIDAS, 21/03/2019
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